Terezinha (Histórias do
orfanato raio de sol)
Neto
Sanville
_______________________________ Parte 01
Os órfãos que
completavam doze anos passavam a dormir nos últimos dois quartos do corredor
principal do orfanato. Havia nove meninos em um quarto e quatro meninas no
outro: Anabela de dezesseis anos, Glória e Fernanda com quinze e Terezinha, a
única branca, com catorze anos.
Apesar dos
esforços das Irmãs que cuidavam do orfanato para que elas se amassem como se
fossem irmãs, Terezinha era odiada pelas outras três por estar sempre contando
a Madre qualquer coisa errada que elas faziam.
Era uma
quarta-feira. Terezinha aproveitou o intervalo da escola, se aproximou de
Anabela e falou:
- Descobri seu segredo!
- Não quero conversar com você. Não tenho NADA para
conversar com você.
- Ah, tem sim! Eu sei que você está grávida.
- O quê? Ora... Não seja ridícula! Pára de inventar coisa.
Me esquece, me deixa em paz!
- Não adianta tentar esconder. Nós dormimos no mesmo quarto.
Acordamos na mesma hora, você usa o banheiro e eu uso logo em seguida. Tomamos
café juntas, a gente vem e volta juntas todo dia da escola... Passamos a maior
parte de nossas vidas juntas.
- Infelizmente!
- Até as nossas regras eram quase no mesmo dia, até três
meses atrás... Achou que ninguém perceberia? Talvez as outras não, mas eu sei
que você não tem menstruado há três meses.
- E daí? Isso não é da sua conta! Isso não quer dizer nada!
- Não se finja de burra! Você sabe do que eu estou falando.
Você está grávida sim! Aposto que a Madre vai adorar essa novidade!
- O que você ganha com isso?
- Vê você se ferrando já é uma recompensa! Aposto que a
Madre vai te deixar trancada no quarto por umas duas semanas, ou te obrigar a
lavar todos os banheiros até a tua barriga tá do tamanho de uma jaca!
- Você é ridícula.
- E quando o teu filho nascer, ela vai dar pra outra pessoa
criar!
- Eu devia...
- Vai fazer o quê? Bater em mim de novo? Esqueceu que semana
passada nós fomos parar na diretoria por sua causa?
- Minha causa? Você que não devia ter contado a Madre que o
Mateus tinha me dado aquele pacote.
- Ah, tá! Vocês ficam fazendo coisas erradas, se escondendo,
e eu que devo ficar calada? Ser cúmplice de vocês? Ignorar o que a Madre nos
ensina? Que não se deve mentir? E eu sei muito bem que não era nenhum diário
como o Mateus falou! Ah, como eu quis saber o que vocês estavam escondendo... Mas deve ser alguma coisa
relacionada a sua gravidez!
- Quer saber? Eu tinha dito a Madre que não contaria a
ninguém o que aconteceu semana passada, mas... Eu encontrei a minha mãe! Ela
vai me tirar daquele orfanato.
- O quê?!? Como pode ser?
- Inteligência, querida, coisa que você não tem!
- Eu não acredito em você!
- Espera pra ver. Não vai demorar muito e eu vou sair dali,
e você vai continuar lá!
- Isso não é justo!
- Veja pelo lado bom para nós duas, não vamos mais precisar
conviver.
- Mas... Eu vou contar a Madre mesmo assim. Você vai se
ferrar! Você e o Mateus, se é que ele é o pai!
- O quê? Agora você passou dos limites! Eu vou... Não, eu
não vou sujar as minhas mãos com você... Eu não entendo por que você me odeia,
eu nunca te fiz mal.
- Eu não te odeio. Só não concordo com as coisas erradas que
você faz. Você não é um bom exemplo para ninguém no orfanato.
- Ah, e você é?
- Eu faço o que é certo, como a Madre e as Irmãs nos ensinam.
- Tá. Já falou o que tinha pra falar? Pode me deixar em paz
agora.
- Eu vou, porque também não gosto de sua companhia.
________________________________ Parte 02.
Ia dar duas horas
da tarde. Terezinha foi falar com a Madre, e ela:
- Terezinha, o que você quer?
- Eu tenho uma informação bombástica!
- Terezinha, escute... Eu sei que pedi para você ficar de
olho na Anabela, mas... Bem, isso já causou briga entre vocês, então eu vou
querer que você só me fale os acontecimentos que forem importantes.
- Mas é muito importante! Ah, eu me lembrei... É verdade que
ela encontrou a mãe dela?
- Como você soube disso?
- Ela me contou... Então é verdade. Ela vai sair daqui...
- É, mas não conte aos outros. Bem, se era só isso, pode ir.
- E ela lhe contou que está grávida?
- O quê?
- É isso mesmo, ela está grávida!
- Menina, como... Tem certeza disso?
- A senhora pode perguntar a ela. Fazer ela falar a verdade.
- É uma acusação grave.
- Faz três meses que ela não... Menstrua.
- Que palavra feia, menina.
- Desculpe, mas é a mais pura verdade. Pergunte a ela.
- Está bem, eu falarei com ela. Você pode ir agora.
- Quer que eu mande ela vir aqui agora?
- Sim, por favor. Obrigada.
Terezinha foi até
a cozinha onde Fernanda e Anabela estavam terminando de lavar os pratos, e
falou olhando nos olhos de Anabela:
- A Madre quer falar com você. Agora!
- Você contou?
- O que você acha?
- Desgraçada! Te odeio.
- Melhor não deixar a Madre esperando...
Anabela saiu e
Fernanda falou:
- O que você aprontou dessa vez, Terezinha?
- Você vai saber logo. Todo mundo vai saber!
- Você não percebe que agindo assim as pessoas só vão te
odiar cada vez mais?
- Tô. Nem. Aí.
- Vai ajudar a secar os pratos?
- Isso não é tarefa minha hoje! Aliás, vou aproveitar que
está fazendo sol e pular corda no jardim com as outras meninas.
Enquanto isso,
Anabela chegou na sala da Madre e depois de confirmar a gravidez, a Madre
disse:
- Quem mais sabe?
- O Mateus e a família da minha mãe.
- Você contou a ela?
- Foi. Eu disse que precisava sair daqui por que estava
grávida, e sabia que a senhora daria o meu filho, como deu o filho da Lívia ano
passado.
- Anabela, há leis e regras que eu preciso manter. Cumprir.
Não posso ir contra elas, mesmo que eu não concorde. Mas... Você não devia ter
escondido sua gravidez. Podia ao menos ter contado depois de ter encontrado a
sua mãe.
- Eu não quis lhe preocupar com isso, Madre. A minha mãe vai
me ajudar, até eu e o Mateus ficarmos juntos.
- Bem, você tem que se consultar. Com quantos meses está?
- Acho que vai fazer quatro.
- Céus! Já devia ter procurado a irmã Adelaide! Você tem que
se cuidar.
_________________________________ Parte 03.
Passara dois dias,
era sexta-feira, dez e meia da manhã. Os Alunos tinham chegado mais cedo, pois
estavam começando a fazerem as últimas provas do ano. Anabela e Fernanda
estavam no jardim, afastadas dos outros. Fernanda falou meio sussurrando:
- Você não sabe o que eu fiz ontem à noite... Peguei o
diário da Terezinha.
- Por que fez isso? Não é certo.
- Eu sei, é que estava com tanta raiva dela, das fofocas que
ela faz... Contar a Madre da sua
gravidez foi a gota d’água. Ainda bem que terminou bem, mas... Queria encontrar
uma forma de me vingar, por isso peguei o diário.
- Você não leu, né?
- Você conseguiria resistir?
- Não. Acho que não, mas... Não quero saber, você tem que
devolver.
- Já devolvi agora há pouco.
- E deu tempo ler tudo?
- Não, mas li um bocado de coisa interessante... Ela fala
mal de todas nós. Até de algumas irmãs. E ela acha que a Madre é como uma
Heroína, e pior; quer ser como ela quando crescer.
- Ela vai para um convento?
- Não, ela quer mandar em todo mundo, ser dona de alguma
empresa, ou coisa do tipo.
- Maluca.
- Totalmente. Mas não é a coisa mais chocante...
- Não me conte. É melhor parar por aqui.
- Você que sabe.
- Nanda, você não pode sair por aí contando a ninguém o que
você leu.
- Tá, mas se ela aprontar alguma, vai se ver comigo.
Passou o resto da
sexta-feira e já era quase nove horas da manhã do sábado. A mãe de Anabela
apareceu no orfanato, e quando Terezinha viu as duas junto, ficou com muita
raiva. E inveja. A mãe de Anabela conversou com a Madre e mostrou os papéis que
provavam que ela estava tentando recuperar a guarda da filha. Ficou certo que
Anabela deixaria o orfanato no outro sábado, e Terezinha ficou com mais raiva
ainda quando soube.
E passou alguns
dias e já era quarta-feira. Apesar da Madre está tratando Anabela bem por causa
da gravidez, o convívio com Mateus ainda era algo proibido, então os dois
continuavam conversando mais por bilhetes. Terezinha descobriu que era Fernanda
quem fazia a troca dos bilhetes entre Anabela e Mateus e não perdeu tempo, foi
logo contar a Madre.
Como castigo, a
Madre obrigou Fernanda a lavar todos os banheiros do orfanato. Fernanda sabia
que Terezinha tinha contado a Madre, e planejou se vingar: iria revelar o
segredo que ela escrevera no diário, e decidira que faria isso na sexta-feira,
para que Anabela ainda tivesse tempo de saborear o sofrimento de Terezinha.
Já era quinta de
tarde. Fazia mais de três semanas que não chegava nenhuma criança no orfanato,
e nenhuma era adotada, só que duas famílias que já tinham vindo algumas vezes
apareceram e levaram dois dos órfãos; um de três anos que era loirinho e outro
de quatro, que era negro. Terezinha ficou com raiva. Era assim toda vez que uma
criança era adotada, ela não conseguia esconder o que sentia. Correu para o
quarto e chorou. Apesar de saber desde os doze anos que não iria mais ser
adotada, ainda não aceitava o fato de ser branca e não ter sido adotada.
________________________________ Parte 04.
Chegou a
sexta-feira. Foi o último dia de aulas, as últimas provas para os que não
ficassem em recuperação, e era esse o assunto depois que terminaram de almoçar.
Todos os órfãos estavam presentes e quatro Irmãs. Antes que começassem a se
levantar, Fernanda se levantou e disse que tinha um comunicado importante.
Todos olharam para ela, e ela começou:
- Eu vou revelar para vocês um segredo, algo que é muito bem
guardado por uma pessoa que todo mundo aqui conhece: Terezinha!
Anabela que
estava sentada ao lado dela se levantou rápido e sussurrou no ouvido dela:
- Nanda, você não pode fazer isso.
- É claro que posso. Ela merece provar do próprio veneno,
ter seus segredos revelados.
- Não faz isso. Olha, pode ser bem pior para você, não se
rebaixe ao nível dela...
Elas estavam
sussurrando e um dos órfãos falou “vai contar, ou não?” e quase todos aderiram,
queriam saber o tal segredo, mas Anabela falou “gente, A Fernanda descobriu que
a Terezinha morre de inveja de mim, é só isso” e alguns disseram decepcionados
“ah, todo mundo sabe disso” e aos poucos todos foram saindo do salão.
Tinha se passado
vinte minutos e Terezinha se aproximou de Fernanda que estava lendo um livro
encostada no tronco da enorme mangueira que havia ao lado do orfanato. Ela
tomou o livro e disse:
- Você acha que vou cair no seu joguinho? Eu não sou como
você e a Anabela que vive aprontando. Eu não tenho nada para esconder.
- Será que não?
- Eu vivo a minha vida honestamente, não sou como vocês que
estão sempre desobedecendo as normas do orfanato.
- “Querido diário, acho que ele me ama. Hoje quando eu
peguei a prova, ele elogiou a minha nota, olhou nos meus olhos, sorriu e piscou
para mim. Senti as minhas pernas tremendo e perdi a fala. Acho até que fiquei
vermelha, pois as minhas bochechas esquentaram, e voltei logo para a minha
cadeira antes que ele percebesse”... Quer que eu continue?
- Você... Você leu o meu diário?
- Li. E se você não parar de vigiar a gente, todo mundo aqui
vai saber que você está apaixonada pelo professor de matemática. Um homem
casado.
- Você roubou o meu diário? Como pode fazer isso? Eu vou
contar para a Madre, você e a Anabela vão se ferrar.
- A Anabela não tem nada a ver com isso, e a sua sorte foi
que ela não permitiu que eu contasse para os outros agora há pouco. Ela nem
sabe o que tem no seu diário. Ao contrário do que você pensa, ela não te odeia.
Ela nem quis saber dos seus segredos.
- Mas você vai pagar por isso!
- Se você contar a Madre, eu conto a todo mundo. E daí que
ela vai me mandar lavar todos os banheiros de novo? Todo mundo vai saber do seu
segredo. Vai pagar pra ver?... Devolve o meu livro e me deixa em paz.
Terezinha
devolveu o livro e saiu. Passou a tarde toda pensando se contava ou não a
Madre, e achou melhor não contar. No outro dia de manhã, a mãe de Anabela veio
buscá-la e todos estavam se despedindo dela. Terezinha se aproximou e pediu
para falar com ela, e se afastaram dos outros. Terezinha disse:
- Me desculpe por tudo, eu... Só estava fazendo o que achava
certo.
- Está tudo bem, já é passado.
- Obrigado por impedir a Fernanda de contar o meu segredo.
Você não sabe mesmo, né?
- Não quis saber. Falei a ela que era errado, e pedi que ela
não contasse, mas não quis saber. Odiaria que alguém lesse o meu diário.
- Eu queria te pedir uma coisa... Me diz como você conseguiu
encontrar a sua mãe.
- Não posso.
- Por favor!
- Eu peguei a chave escondido e pedi que o Mateus entrasse
no quarto dos segredos e procurasse alguma pista.
- Nossa, você é do mal mesmo! Eu nunca faria uma coisa
dessas.
- Imagino que sim, mas foi assim que descobri o bilhete que
minha mãe deixou comigo quando cheguei aqui, onde ela explicava o motivo e
deixou a assinatura. O Mateus a encontrou procurando na lista telefônica.
Inteligência e sorte. Mas, eu sei que você não vai roubar a chave, nem invadir
o quarto dos segredos, então, vai ficar aqui até completar dezoito. Boa sorte,
preciso ir.
- Boa sorte também. Mesmo.
Anabela voltou
para junto dos outros, e pouco depois saiu do orfanato com a sua mãe. Terezinha
passou o resto do dia perturbada com a idéia de que podia haver no quarto dos
segredos alguma coisa que a levasse até os pais. E passou mais três dias
pensando nisso, até que decidiu tomar uma atitude. Procurou a Madre, que falou
quando a viu:
- Não me diga que aprontaram alguma coisa?
- Não que eu saiba. Eu preciso falar com a senhora... Eu
descobri que o Mateus invadiu o quarto dos segredos e descobriu sobre a mãe de
Anabela.
- Isso não importa mais, os dois foram castigados e Anabela
já não pertence mais a esse orfanato.
- Eu sei, mas... Madre, eu nunca faria isso, nunca invadiria
o quarto, mas eu queria saber se tem alguma coisa lá sobre os meus pais.
- Terezinha, nem todas crianças são deixadas aqui com
informação dos pais.
- Eu sei, eu vejo isso, mas... Por favor, eu preciso saber.
- Eu me lembro de todas as crianças que chegaram até hoje,
eu arquivo tudo pessoalmente... Você não foi deixada aqui por sua mãe ou seu
pai, foi a justiça que lhe trouxe. Acredite, não tem como encontrar ninguém da
sua família.
- Eles morreram? Foi num incêndio?
- Querida, você foi... Foi achada numa sacola dentro de um
lixeiro na rua. Desculpe.
- O quê?
- Desculpe, só lhe conto isso para que não alimente
esperanças de encontrar sua família. Não chore...
A madre a abraçou
e falou:
-Vai ficar tudo bem, você vai superar isso, já está ficando
uma moça, logo estará pronta para fazer a sua vida. Nós estamos aqui para
cuidar de você. Não é o que temos feito? Tudo vai ficar bem, querida.
Pouco depois
Terezinha pegou seu diário e começou a escrever: “Querido diário, hoje é o dia
mais triste da minha vida”.
Fim