Nota:
O orfanato raio de sol é
fictício, criado para o romance “Anão sim senhor.” Tive inspiração para algumas histórias curtas, e essa é a primeira que escrevo, as outros ainda estão na
minha mente. As escreverei aos poucos para colocá-las aqui no meu blog.
Anabela (histórias do orfanato raio de sol)
Neto Sanville
Parte 1
Garanhuns, mil
novecentos e oitenta e seis. Era fim de primavera, uma quarta-feira, fim de
tarde. Anabela conversava quase sussurrando com Mateus enquanto ele aguava as
plantas, longe dos outros órfãos:
- Tem que ser hoje à noite, na hora do jantar. Você entra lá
e procura.
- E se não tiver nada de sua família?
- Já conversamos sobre isso, Mateus. Já te falei que tudo
que vem com os órfãos fica trancado lá. Se tiver alguma coisa da minha família
ou da sua, está lá.
- Você sabe que isso que vamos fazer não é certo.
- Não temos escolha. Daqui a três meses você vai ter que
deixar o orfanato, e eu não vou poder te acompanhar, a Madre já foi bem clara
sobre isso, e... Você sabe o que vai acontecer quando eu não puder mais
esconder a minha gravidez... Você viu o que aconteceu com a Lívia no ano
passado... Não quero que tirem o nosso filho e dêem para outras pessoas criar.
- Eu não vou deixar isso acontecer, mas... Você acha que se
a gente descobrir alguma coisa sobre os nossos pais, eles vão querer nos
ajudar?
- Eles tem que nos ajudar! Você trabalha, mas eu sei que não
ganha o suficiente para cuidar de nós três; e se a Madre proibiu o nosso
namoro, imagina se ela descobrir que eu estou grávida? Eu só tenho dezesseis
anos, ela não vai me deixar ficar com o nosso filho.
- Tá, hoje à noite eu vou procurar, se tiver alguma coisa
que veio comigo ou com você, eu vou encontrar. Olha, melhor você se afastar, a
irmã Júlia está olhando pra cá.
Ela voltou para
dentro do orfanato e foi ajudar nas tarefas da cozinha. Pouco depois já era o
jantar, e Mateus aproveitou para jantar logo e invadir o quarto, como tinha
combinado. Conseguiu entrar, Anabela tinha pego mesmo a chave certa. Procurou
por quase meia hora, abrindo e fechando pequenas caixas arquivadas com datas
dos anos em que ambos nasceram. Não encontrou nada nas do ano dele, mas depois
de oito tentativas, ao abrir uma pequena caixa marrom encontrou um papel
escrito “00284 – Anabela”, fixado com durex amarelado numa sacola plástica
preta. Não quis abrir a sacola e perder mais tempo. Saiu e foi para o quarto.
Teve sorte, não foi pego. Apesar da curiosidade, não abriu, escondeu entre suas
coisas.
A nova tevê a
cores do orfanato era a diversão noturna dos órfãos, e todos assistiam em
silêncio, acompanhados de algumas Irmãs. Mateus se juntou aos outros, e ao
passar por Anabela, entregou a chave discretamente. Tinham combinado de se
encontrar no outro dia de manhã durante o intervalo da escola. Ele trabalhava
perto e de vez em quando faziam isso.
Quando ele saiu
para trabalhar, levou a pequena caixa marrom dentro da mochila, e quando o
sinal do intervalo tocou, ele já estava do lado de fora do muro da escola. Não
demorou e ela se aproximou dele. Separados só pelo muro que não era alto, ele
entregou disfarçadamente a sacola a ela, e como estavam em público, não se
beijaram, nem conversaram muito. Ele voltou para o trabalho antes mesmo do
intervalo terminar.
Parte 2
Passara o dia, e
já era quase oito horas da noite, estavam a maioria na sala assistindo a
novela, quando a Madre apareceu e pediu que a Irmã Carolina desligasse a tevê.
Todos olharam para ela, achavam que ela ia comunicar algo importante, e ela:
- Anabela, minha jovem... Eu soube que você ganhou um
presente hoje na escola, de seu ex-namorado. Pode nos contar o que é? Melhor,
pode nos mostrar?
Todos olharam
para Anabela, que ficou muda, e branca de medo. Mateus interrompeu:
- É um diário para ela anotar as coisas dela. Não tem nada
demais, Madre. A senhora pode acreditar em mim.
- Posso mesmo?... Quero falar com vocês dois AGORA na minha
sala, me acompanhem!
Quando entraram
na sala, que era como um escritório, viram a pequena caixa marrom em cima da
mesa. A Madre contou que tinha mandado a Irmã Iasmim procurar. Falou que estava
decepcionada com os dois, e que a partir de agora, eles estavam proibidos de
ficar por mais de três minutos juntos. E avisou que ela seria ainda mais
vigiada na escola. Anabela disse que ela não podia impedir o amor dos dois, mas
a Madre disse que esse amor era impossível, e que se eles se amassem mesmo,
esperasse até os dois estarem fora do orfanato para viverem esse amor. Tinha
regras e leis que ela tinha que manter. E que ela não devia procurar os pais. E
Anabela:
- A senhora não pode me impedir de tentar. Sei que a
assinatura dela no bilhete que estava junto da minha roupinha cor de rosa, e
aquela figa é pouca coisa, mas eu vou procurar sim!
- Menina, olhe como fala comigo. Me respeite!
Anabela deu dois
passos e enquanto pegava a pequena caixa, falou: “E a propósito, essas coisas
me pertencem”. A Madre riu meio sem jeito e disse: É assim que nos agradece
pelo que fizemos por vocês... Está bem, pode levar a caixa. Saiba que até você
completar dezoito anos, está sobre os meus cuidados. E a partir de agora eu vou
ficar de olho em vocês dois. Podem ir, tenho muito o que fazer. Voltem para a
sala da tevê, e sem cochichos. Quando chegaram na sala, os outros órfãos fingiram
ignorar o que tinha acontecido, sabiam que era melhor assim.
No outro dia de
manhã, a Irmã Carolina teve que ir na escola, pois Anabela e Terezinha estavam
na secretaria depois de serem pegas uma agarrada nos cabelos da outra na hora
do intervalo. Quando chegaram ao orfanato, as duas foram levadas até a Madre,
que dessa vez, achou que devia castigar Anabela, e ficou certo que ela lavaria
todos os banheiros do orfanato sozinha.
Parte 3
Tinha passado
quatro dias, era uma terça-feira. Mateus tinha recebido um bilhete de Anabela,
e estava no hospital. Ele tentou, mas não conseguiu nenhuma informação se “Ana
Luzia” tinha tido uma filha nesse hospital em mil novecentos e setenta. Como
não ia trabalhar, foi em outros dois hospitais, mas não conseguiu descobrir
nada, então era hora de partir para o plano B. Na lista telefônica havia cinqüenta
e quatro citações de “Ana Luzia” em Garanhuns, e teriam que investigar todas.
E passou cinco
semanas até que ele chegou num endereço e se surpreendeu com a semelhança que a
menina que o atendeu tinha com Anabela. A desculpa que usou para abordar todas
as que visitou foi a mesma, estava vendendo biscoitos caseiros para aumentar a
renda do orfanato (O que era verdade, mas não função dele). Escreveu um bilhete
para Anabela e ela recebeu na mesma noite e ficou ansiosa. Os dois quase não
conversavam, as Irmãs estavam sempre observando, então era mais por bilhetes. E
ela mandou no outro dia um para ele dizendo que ia conseguir um jeito de ir no
endereço que ele anotou, que fica no outro lado da cidade.
Assim que saiu da
escola, ela fugiu dos outros órfãos. Sabia que
Terezinha ia contar logo para a Madre, mais não importava, ia encontrar
a mãe, ia resolver sua vida. O coração estava acelerando. Sentia sede e fome,
mas continuou na caminhada de mais de meia hora. Quase cinqüenta minutos tinha
se passado quando ela tocou a campainha da casa de número oitenta e seis. Um
homem branco de mais ou menos quarenta anos abriu a porta e olhou para ela. Não
era o que esperava, e desmaiou.
Acordou deitada
num sofá cinza. Viu duas meninas olhando para ela, e o homem branco estava ao
telefone. Uma das meninas gritou “ela acordou” e foi quando Anabela virou a cabeça
e viu no outro sofá uma mulher chorando. E ela era bem parecida com ela. As
meninas eram parecidas com ela, não teve dúvida, tinha encontrado a sua mãe.
Tentou se levantar, mas se sentou. A mulher enxugava as lágrimas, o homem se
aproximou e perguntou se ela estava bem, e ela disse:
- Estou... Morrendo de fome.
- Nossa, você desmaiou de fome? Essa farda que você está usando...
Essa escola não fica perto daqui, fica? Você não comeu nada ainda hoje?
- Não posso comer muito, não quero engordar.
- Desculpe dizer, mas você precisa comer, é muito feio ficar
desmaiando de fome. Eu pensei até que fosse algo grave, já estava ligando para
o hospital.
- Pode me arrumar ao menos um copo de água, por favor?
- Claro. Querida, você não disse que o almoço já estava
pronto? Faça um prato para ela.
- Papai, quem é ela?
- Boa pergunta, filha. Afinal, quem é você, garota?
- É exatamente isso que vim fazer aqui, acho que sua mulher
tem a resposta.
- Querida?
- Conversaremos depois que ela comer.
Parte 4
Anabela tinha
acabado de comer. O homem que estava sentado ao lado da mulher no outro lado da
mesa falou:
- Então, podemos conversar agora. Querida, você a conhece? É
alguma sobrinha sua?
- Você notou a semelhança... O mesmo nariz, a mesma cor de
pele.
- Não tinha notado, mas agora que você falou... Garota, quem
são os seus pais?
- Eu não sei. Vivi minha vida toda num orfanato. Vendo
outras crianças brancas sendo adotadas, e eu não.
Ficaram em
silêncio. A mulher falou num sussurro: “Me perdoe” e o marido insistiu:
- O que está acontecendo, querida?
- Ela... Fui eu que a coloquei no orfanato. Eu era muito
nova, foi quatro anos antes de começarmos a namorar... Eu não faria isso se
fosse hoje... Me arrependo tanto... Porque me procurou? Como me achou?
- Tive muito trabalho, mas tinha que lhe encontrar. Preciso
sair daquele orfanato.
O marido
interrompeu:
- Calma aí, não é assim não.
- Meu marido tem razão, não é tão simples assim...
- É bem simples sim. Não vim pedir que me crie, só quero um
lugar para ficar por um tempo até arrumar um emprego. Eu tenho um namorado,
vamos morar junto assim que der. A senhora me deve uma ajuda!
- Mas... Se vocês vão se casar um dia, por que não espera
para sair do orfanato quando for morar com ele?
- Porque eu estou grávida, e se eu ficar no orfanato, terei
que entregar o meu filho para outra pessoa criar, ou pra viver num orfanato até
completar dezoito anos e ser expulso! EU NÃO VOU DEIXAR ISSO ACONTECER COM O
MEU FILHO!
O marido
interrompeu de novo:
- Calma! Nossa!... Calma, vamos conversar direito. Vamos...
Preciso só entender o que está acontecendo aqui...
E passou quase
uma hora. O carro vermelho parou perto do orfanato e Anabela desceu. Quando
entrou no orfanato foi logo levada até a Madre. Disse que tinha ido procurar os
pais, e encontrou a mãe. A Madre ficou surpresa, e depois de um pequeno
silêncio, falou:
- Não pense que será tão simples. Ela terá que entrar na
justiça para recuperar a sua guarda, afinal, ela a deixou aqui.
- Eu sei, ela já me contou todos os motivos. E eu a perdoei.
- E ficou tudo bem, simples assim?
- Não... Mas ela vai me tirar daqui.
- Eu... Fico feliz com isso, acredite. Anabela, me diga...
Você foi maltratada aqui? Você vê alguma criança sendo maltratada?
- Não, Madre.
- É que às vezes você fala num tom, como se alguma de nós
não cuidássemos bem de qualquer um que chega aqui...
- Desculpe. A senhora tem razão. É que...
- Menina, pode falar. Se aconteceu alguma coisa, pode me
falar.
- Não. Só que a senhora não sabe como é ver as outras
crianças sendo adotadas... E eu... Madre, a senhora sabe que não serei mais adotada.
E sabe também porque até hoje não fui.
- É, eu sei. Devia ter percebido que era isso que te deixava
triste.
- Mas está tudo bem agora. Quanto mais cedo a minha mãe me
tirar daqui, melhor.
- Você está certa, menina.
- A senhora vai me castigar?
- Anabela, você saiu da escola e não voltou logo para cá...
E se os outros começarem a fazer o mesmo?
- A senhora tem razão. Não vai mais acontecer.
- Espero que sim. Você pensará melhor sobre tudo isso
durante a tarde enquanto descascará TODAS as verduras para a sopa.
Fim